O céu, o inferno e a respiração

respiração yoga

Existe uma certa parábola budista que vai mais ou menos assim:

“Certa vez um guerreiro estava passeando pela floresta e encontrou um grande mestre meditando sob uma árvore. Dirigiu-se a ele, e lá chegando apresentou-se e disse:

– Mestre, se me permite a intromissão, gostaria de perguntar – o que são realmente são o inferno e o céu?

O mestre abriu seus olhos, de repente, e começou a despejar uma torrente de insultos e impropérios na direção do guerreiro, que passou rapidamente da supresa à furia e, sacando de sua espada, estava prestes a decapitar o velho mestre quando este disse:

– Isto é o inferno.

Ao voltar a si e perceber o que a raiva quase o fez fazer, o guerreiro jogou sua arma ao chão e ajoelhou-se, chorando, pedindo perdão ao monge por quase tê-lo matado. Ele o perdoou instantaneamente, o que fez o outro muito grato e sorridente. Então, o velho emendou:

– E isto é o céu.”

Se isto fosse um conto da carochinha, ao final haveria uma moral da história mais ou menos assim: “se você não puder achar paz dentro de si, você não a encontrará em lugar nenhum.” 

O fato é que não importa onde estejamos, ou com quem, em última instância quem ditará se a situação é ou não é desagradável, vai ser a nossa mente. Há dias em que nem mesmo um engarrafamento de três horas pode nos tirar do sério, enquanto em outros basta o elevador demorar quinze segundos e já estamos lá socando o botão. A vida é assim mesmo? Será que nos resta sermos escravos dos nossos humores?

Em princípio pode parecer que sim. Se tem uma coisa sobre a qual não temos controle é o quê vai aparecer em nossa mente, e quando. Krishna diz a Arjuna, seu discípulo, no capítulo 6 da Bhagavad Gita que “Verdadeiramente, a mente é instável, tumultuosa, poderosa e obstinada… Considero que dominá-la é mais difícil que controlar o vento!”. 

Mas é claro que não podemos simplesmente ser jogados de um lado para o outro, balançando de um lado para o outro segundo os humores. Caso contrário, agiremos sempre impulsivamente e, embora não cheguemos a extremos como o amigo guerreiro da história acima, bem que às vezes teremos essa vontade. Não fazer simplesmente o que nos dá na veneta é o essencial do convívio social. E para o praticante de yoga, que é sempre um aspirante a meditador, saber navegar as ondas mentais é ainda mais importante. 

Mas se o próprio mestre Krishna já disse que é mais fácil tentar prender o vento, como vamos nos meter a controlar logo o órgão mais subtil de todos, que é a nossa mente? O truque não é tentar controlar o que vem à sua cabeça ou não, mas saber a quais pensamentos dar corda e a quais não. Isto caracteriza uma faceta de “śaucam” ou a pureza (no caso, mental) de que nos fala o mestre Patañjali em sua mais célebre obra, os Yoga Sutras, do séc V aC. Neste trabalho, ele nos lista dez comportamentos, lá chamados de “yamas” e “niyamas” cujo real objectivo é tornar a mente um terreno mais fértil para a meditação e as práticas espirituais, como o yoga. Mais à frente, ele nos fornece uma outra pista de como podemos atingir a mente, através de um meio que conhecemos bem – a respiração. Isto é o que vai caracterizar o objectivo mais alto da prática do “prāṇāyāma”. 

Não é difícil perceber que existe uma relação muito estreita entre nossos estados mentais e a respiração. Não é difícil reparar, por exemplo, que quando estamos excitados ela fica acelerada e curta; quando assustados, respiramos incerta e pesadamente, ou mesmo retemos o ar sem perceber. Podemos, a partir deste princípio, seguir o conselho do mestre Patñnjali e tentar equilibrar prāṇa e apāna, ou seja – tornar inspiração e expiração equivalentes em intensidade, som e duração. E o efeito é quase imediato. Se, deliberadamente, fazemos da nossa respiração calma, consciente e compassada, isso sugere à mente um ar sereno. Esse ponto é reforçado pelo fato de que, quando respiramos desta maneira, estamos fixando atenção no momento presente. Isto é importante pois as raízes da incerteza e a ansiedade estão presas no futuro, e as bases da auto-crítica e do arrependimento estão ancoradas no passado. Estando no aqui e agora, podemos apreciar a paz de estar em nossa própria companhia. De quebra, abrimos as portas para duas das mais prezadas qualidades de um Yogi, segundo a Tradição do Vedanta – a tranquilidade e a capacidade de foco da mente.

Respirar bem, portanto, não é só uma questão de saúde física como ouvimos por aí do nosso médico. É um bálsamo para o nosso dia-a-dia, que se torna cada vez mais essencial à medida em que sentimos o benefício imenso de ter uma mente mais tranquila e focada. E isso não precisa ser feito somente numa aula de Yoga. Atividades como corrida ou natação, por incentivarem a sincronia entre movimento e respiração, são excelentes meios de se entrar em contato com esse aspecto, digamos, “pré-meditativo” do ato de respirar. De outra forma, é algo que podemos fazer a qualquer momento. Já estamos sempre respirando mesmo, por que não tentar?

Leandro Castello Branco
Leandro Casttelo Branco

Leandro Castello Branco, coordenador do Saraswati Studio de Yoga no Rio de Janeiro, vive o Yoga há mais de duas décadas. Morou seis meses na Índia em 2006 e desde então teve a oportunidade de viajar estudando vedanta, yoga e meditação com diversos mestres como Swami Dayananda Saraswati, S.S. o Dalai Lama e o mestre zen Thich Nhat Hanh. É autor do "Guia Prático para o Coração do Yoga", que chegou a ser um dos mais vendidos da Amazon/Kindle na categoria "Saúde e Família" e hoje já formou mais de 520 professores de Yoga. Em 2017 iniciou um trabalho online que já impactou centenas de milhares de pessoas em cursos, workshops e palestras.

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