Quem já pratica yoga há algum tempo certamente já ouviu algum amigo comentar: “Hoje à tarde o pessoal vai levar uns instrumentos e cantar mantras assistindo ao pôr do sol! Vamos lá?” ou “Ontem fui num showzinho de mantras irado! Tava um astral ótimo!”.
Mas o que realmente a Tradição do yoga diz sobre os mantras? E, a propósito, o que são eles realmente?
Num encontro como esses, ao som de instrumentos de sopro, cordas e percussão, normalmente o que ouvimos são kīrtans ou bhājans e ambos são composições devocionais (em louvor a Śiva, Kṛṣna, ou alguma outra deidade). Para entender a diferença entre eles pense no último “show de mantras” em que você esteve. Sabe quando o músico lá na frente fica repetindo versos que o público, por sua vez, repete de volta? Isso é um kīrtan – versos simples musicados que o publico e o artista repetem indefinidamente.
E sabe quando o músico fica cantando sozinho versos enormes que a gente não sabe nem por onde começar a repetir? Isso é um bhājan, ou seja, uma composição mais complexa, geralmente montada em cima de uma rāga (estrutura melódica da música clássica indiana) e que, pra nós aqui, brazucas, são quase impossíveis de repetir por quem não conhece a letra. Se você já foi a uma reunião dessas, com certeza isso tudo deve parecer muito familiar.
Legal, mas…. e os mantras?
Bem, originalmente dá-se o nome “mantra” somente às palavras contidas nos Vedas (Ṛg, Sāma, Yajur e Atharva), que inicialmente eram um só corpo de conhecimento e que depois foram reorganizados em quatro, diz-se, pelo famoso Veda Vyāsa. Portanto, um mantra estará sempre em sânscrito, ao contrário de um canto devocional que pode estar em hindi, tamil ou outra das dezenas de línguas modernas da Índia. Além disso, segundo consta na tradição, os Vedas não têm autor humano, ou seja, não foram compostos por nenhum sábio, músico ou poeta.
São as palavras de Īśvara, o Criador, que ensinam o conhecimento do sanātana dharma, da “eterna boa conduta”, do estilo de vida que chamamos de Yoga, que tem como objetivo o autoconhecimento. Os mantras dos Vedas foram recebidos de uma determinada maneira pelos antigos Ṛṣis, sábios, em estado de meditação profunda e esta maneira é preservada pelas regras rígidas do canto Védico.
Na Taittirīya Upaniṣad (do Yajur Veda) temos, logo no começo, as seis regras a serem observadas no canto de um mantra:
- Varna – Boa pronúncia e articulação de cada sílaba sânscrita.
- Svara – Respeito à variação tonal das sílabas, representadas, hoje, por traços horizontais ou verticais, acima ou abaixo das sílabas do mantra
- Mātra – Tempo uniforme do canto, respeitando as vogais longas e curtas
- Balam – Força uniforme do canto, energia
- Sāma – Uniformidade do canto
- Santānah – Atenção à justaposição das sílabas e palavras, a forma como cada uma se conecta com a que vem depois.
Aí você pensa “Poxa, vida! Eu só tava querendo cantar um mantrinha! Pra quê isso tudo?” Não seria isso talvez uma preocupação excessiva? Neste ponto vale a pena lembrarmos que, em seu início – e até pouco tempo atrás -, a Tradição do Yoga era inteiramente oral e protegida pelo sampradāya, ou seja, a transmissão do ensinamento de um mestre para um discípulo. Então os mantras dos Vedas eram ao mesmo tempo uma forma de proteger o ensinamento contra a ação do tempo, uma forma de levar o coração do ensinamento adiante, através dos séculos. A regra rígida do canto protege a forma na qual o conhecimento está guardado – a palavra, os versos, a métrica.
Por fim, o estudo do canto, sob o nome de “Śīkṣā“ é um dos “vedangas” – estudos auxiliares para dar suporte à mente de quem quer entender os Vedas. Assim como a astrologia Védica (Jyotisha), o estudo da pronúncia e da fonética – o canto Védico – era considerado uma ferramenta muito importante para a preparação da mente do indivíduo interessado em trilhar o caminho do Yoga. Para cantar um mantra corretamente, é necessário que a mente não oscile muito e esta capacidade, chamada de “antaḥ kāraṇa naiścalya”, é um dos requisitos fundamentais para preparar a mente para o autoconhecimento.
Então, fundamentalmente, os kīrtans e bhājans são muito mais diferentes dos mantras do que parecem à primeira vista. Mas esse canto conhecido como “devocional” pode ser uma ótima porta de entrada para o canto védico, desde que se aplique as regras de pronúncia, esforço, etc, a qualquer kīrtan ou bhājan que a pessoa conheça. Quando bem orientado, esse esforço torna a coisa toda familiar para o praticante e o aprendizado do mantra, com um professor competente, flui mais tranquilamente.
Om tat sat.