O que são Mantras? (e o que não são)
Quem já pratica yoga há algum tempo certamente já ouviu algum amigo comentar: “Hoje à tarde o pessoal vai levar uns instrumentos e cantar mantras assistindo ao pôr do sol! Vamos lá?” ou “Ontem fui num showzinho de mantras irado! Tava um astral ótimo!”. Só que quem começa a estudar mantras ou sânscrito começa a achar algumas coisas estranhas… alguns desses cânticos ou músicas não parecem mantras… mas… se não forem mantras, o que podem ser? Somente músicas normais?
O que realmente a Tradição do yoga diz sobre os mantras? O que são eles realmente – e o que não são?
É de fato muita bagunça e vamos tentar botar uma ordem nisso aí!
Acompanhe!
Nem tudo que se canta é mantra!
Num encontro como esses, ao som de instrumentos de sopro, cordas e percussão, normalmente o que ouvimos são kīrtans ou bhājans e ambos são composições devocionais (em louvor a Śiva, Kṛṣna, ou alguma outra deidade). Para entender a diferença entre eles, pense no último “show de mantras” em que você esteve (ou na última playlist de Spotify que ouviu).
Sabe quando o músico lá na frente fica repetindo versos curtos que o público, por sua vez, repete de volta? Isso é um kīrtan – versos simples musicados que o público e o artista repetem indefinidamente. Coisas como “sharanam ganesha”, “jaya shri krishna”, “jay rama hanuman” ou coisas assim pertencem a essa classificação.
E sabe quando o músico fica cantando sozinho versos enormes que a gente não sabe nem por onde começar a repetir? Isso é um bhājan, ou seja, uma composição mais complexa, muitas vezes montada em cima de uma rāga (estrutura melódica da música clássica indiana) e que, pra nós aqui, brazucas, são quase impossíveis de repetir por quem não conhece a letra. Se você já foi a uma reunião dessas, com certeza isso tudo deve parecer muito familiar. O famoso Hanuman Chalisa é um exemplo de bhājan muito comum (e muito bonito!)
Legal, mas…. e os mantras?
O que são os mantras?
Bem, originalmente dá-se o nome “mantra” somente às palavras contidas nos Vedas (Ṛg, Sāma, Yajur e Atharva), que inicialmente eram um só corpo de conhecimento e que depois foram reorganizados em quatro, diz-se, pelo famoso Veda Vyāsa. Portanto, um mantra estará sempre em sânscrito, ao contrário de um canto devocional que pode estar em hindi (como o famoso Hanuman Chalisa!), tamil ou outra das dezenas de línguas modernas da Índia. Além disso, segundo consta na tradição, os Vedas não têm autor humano, ou seja, não foram compostos por nenhum sábio, músico ou poeta. São as palavras de Īśvara, o Criador, que ensinam o conhecimento do sanātana dharma, da “eterna boa conduta”, do estilo de vida que chamamos de Yoga, que tem como objetivo o autoconhecimento. Os mantras dos Vedas foram recebidos de uma determinada maneira pelos antigos Ṛṣis, sábios, em estado de meditação profunda e esta maneira é preservada pelas regras rígidas do canto Védico.
“Nossa! Seis regras? Por que tudo isso?”
Pois é, já vamos ver. Antes, penso que você deveria conhecê-las primeiro!
A seis regras do canto tradicional de Mantras
Na Taittirīya Upaniṣad (do Yajur Veda) temos, logo no começo, as seis regras a serem observadas no canto de um mantra:
Varna – Boa pronúncia e articulação de cada sílaba sânscrita.
Svara – Respeito à variação tonal das sílabas, representadas, hoje, por traços horizontais ou verticais, acima ou abaixo das sílabas do mantra
Mātra – Tempo uniforme do canto, respeitando as vogais longas e curtas
Balam – Força uniforme do canto, energia
Sāma – Uniformidade do canto
Santānah – Atenção à justaposição das sílabas e palavras, a forma como cada uma se conecta com a que vem depois.
Aí você pensa “Poxa, vida! Eu só tava querendo cantar um mantrinha! Pra quê isso tudo?” Não seria isso talvez uma preocupação excessiva?
Bom, neste ponto vale a pena lembrarmos que, em seu início – e até pouco tempo atrás -, a Tradição do Yoga era inteiramente oral e protegida pelo sampradāya, ou seja, a transmissão do ensinamento de um mestre para um discípulo. Então os mantras dos Vedas eram ao mesmo tempo uma forma de proteger o ensinamento contra a ação do tempo e uma forma de levar o coração do ensinamento adiante, através dos séculos. A regra rígida do canto protege a forma na qual o conhecimento está guardado – a palavra, os versos, a métrica.
Por fim, o estudo do canto, sob o nome de “Śīkṣā” é um dos “vedangas” – estudos auxiliares para dar suporte à mente de quem quer entender os Vedas. Assim como a astrologia Védica (Jyotisha), o estudo da pronúncia e da fonética – o canto Védico – era considerado uma ferramenta muito importante para a preparação da mente do indivíduo interessado em trilhar o caminho do Yoga. Para cantar um mantra corretamente, é necessário que a mente não oscile muito e esta capacidade, chamada de “antaḥ kāraṇa naiścalya”, é um dos requisitos fundamentais para preparar a mente para o autoconhecimento.
E pra que serve um mantra?
Como vimos, o objetivo principal do mantra era revelar e difundir o conhecimento do Yoga. Mas, é óbvio que essa não é a única função dele!
Mantras funcionam, principalmente como foco para a mente. Aliás, isso está na própria definição da palavra mantra – “mananam trayati mantrah” – “aquilo que protege a mente, isso é um mantra”. Isso quer dizer que, naturalmente, uma das principais funções dos mantras é a meditação. Aliás, este tipo de meditação chamada de “japa” (repetição de mantras) é a recomendada na maioria dos textos clássicos do yoga, como os Yoga Sutras. Para fazê-la, tudo que é preciso é aprender um mantra curto (se ele for longo a meditação vai durar muuuuito tempo) e repeti-lo 54 vezes, 108 ou múltiplos de 108 vezes (esse número é importante e até sagrado na Tradição). Aliás, está cientificamente comprovado que esse tipo de meditação com som tem efeito calmante na mente!
Uma outra aplicação para o mantra é como uma forma de oração. Para isso, é preciso compreender ainda melhor a tradução do cântico a ser repetido, bem como o simbolismo por trás dele. Por exemplo, vamos dizer que seja um mantra para “Śiva”. Bem, mas quem ou o que é “Śiva”? Segundo a simbologia hindu Śiva é um nome dado para a energia, intenção, vibração (insira aqui a palavra de sua preferência) que destrói as coisas quando elas chegam ao fim de sua existência. Criação, manutenção e destruição são partes integrantes do Cosmos e, na Tradição Hindu, cada um recebe um nome e uma forma, para que a pessoa possa se aproximar mais e se relacionar com cada um desses aspectos da natureza. Na verdade, isso acontece com beeeem mais coisas do que essas três, acontece praticamente com tudo! Conhecimento, boa sorte, fortuna, força, saúde, e tudo que você pode pensar de coisa boa ganha um nome, uma forma e um lugar no panteão de “deuses e deusas” do hinduísmo!
Então, o que você precisa fazer é selecionar o mantra que melhor represente a intenção da sua prece e usá-lo como você faria com um pai-nosso. Se o seu coração estiver no lugar certo e suas crenças pessoais não interferirem no processo, essa é uma forma maravilhosa de se conectar com o que há aí fora (Deus?)
E o que acontece se eu cantar um mantra errado?
Bem… essa parte não é muito “preto no branco” pois não podemos observar esses efeitos. Existe um pouco de crença, definitivamente, envolvendo os “poderes dos mantras”… Mas, vamos raciocinar juntos sobre isso?
Você gostaria de ficar fazendo uma oração ou mesmo cantar uma música cujo conteúdo seja “quero pobreza! quero ignorância! que haja desastres e meu corpo fique fraco”?? Eu imagino que não.
Isso é o que acontece quando você canta um mantra errado, cometendo enganos na pronúncia do sânscrito. Apenas um “A” a mais ou a menos, uma sílaba que é alongada, pode alterar o significado do que está sendo dito! Você pode pegar as palavras “jñāna” e “ajñāna”, por exemplo: elas significam respectivamente conhecimento e ignorância. Uma sílaba mais longa ao final pode levar uma palavra ao feminino (as palavras terminadas em A geralmente são masculinas), um engano na hora de alongar ou encurtar sílabas pode alterar, por exemplo a palavra para “oferenda” (prasādam) para significar “palácio” (prāsādam). Então, não sei quanto a você, mas eu, quando não sei um mantra, eu prefiro escutá-lo corretamente ou aprender a cantá-lo!
Resumindo essa história de mantras
Então, fundamentalmente, os kīrtans e bhājans são muito mais diferentes dos mantras do que parecem à primeira vista. Mas esse canto conhecido como “devocional” pode ser uma ótima porta de entrada para o canto védico, desde que se aplique as regras de pronúncia, esforço, etc, a qualquer kīrtan ou bhājan que a pessoa conheça. Quando bem orientado, esse esforço torna a coisa toda familiar para o praticante e o aprendizado do mantra, com um professor competente, flui mais tranquilamente.
Existem mantras muito simples para serem usados na meditação, muitos deles com apenas uma sílaba, como o famoso mantra “OM”. Então mesmo que não haja alguém perto de você para te ensinar os cânticos mais complexos, nada está perdido! Ainda assim dá pra meditar e também escutar os mantras sendo entoados por sacerdotes, yogis e professores experientes. Vou, aliás, deixar aqui o link de um mantra super complexo e muito poderoso para Śiva! Ele pode ser ouvido em momentos de dificuldade ou mesmo para limpar um ambiente!
Om tat sat.